No limiar da industrialização de Portugal durante a idade da monarquia liberal, no século XIX, em torno à adoção oficial do sistema métrico e durante o ciclo de expansão dos caminhos de ferro, a tipologia edilícia de base assume novas formas na urbanização periférica de cariz especulativo. Esse contexto não costuma ser incluído no universo da arquitetura vernácula de produção autônoma, mas tampouco pertence ao escopo da construção verdadeiramente seriada, moderna e industrializada, e nem, no mais das vezes, ao da arquitetura erudita « de arquiteto ». Neste capítulo, apresento um tipo de casa de morada do século XIX português do ponto de vista da sua inclusão no espectro vernáculo, e argumento que ele representa uma transição espontânea desde soluções mais antigas, produzida por agentes inseridos em linhagens produtivas tradicionais.

Casas correntes térreas com camarinha, alinhadas numa rua com carros estacionados
Casas correntes de 40 palmos em Montes Claros, Coimbra. Foto do autor

O objeto de estudo em questão é um tipo de casa corrente com testada de aproximadamente 40 palmos (9 metros), com pequenas variações para mais ou para menos. Esse tipo é predominantemente atestado de meados do século XIX até o início do XX em tecidos de expansão suburbana nas Beiras, como na área de Montarroio e Montes Claros em Coimbra, nos cais de Aveiro, ou ainda em alguns projetos seriados na vila ferroviária do Entroncamento.

Casas correntes térreas com empena sobre a rua e fachadas de azulejos
Casas de 40 palmos em meio a outras dimensões de lotes na freguesia de Vera Cruz, Aveiro. Foto do autor

Este tipo de casa corrente, atestado no limiar cronológico e conceitual da modernização industrial, é um caso extremo importante para se debater o escopo da noção de « arquitetura vernácula » e a metodologia do seu estudo. A vasta bibliografia que se ocupa da morada operária e daquela burguesa dá pouca atenção à modularidade do parcelamento do solo e à interdependência entre dimensões de testadas de lotes e tipos edilícios. Todavia, essa interdependência é amplamente atestada na história da arquitetura tradicional portuguesa, desde as vilas medievais planeadas com lotes de 25 palmos aos « chãos » suburbanos do Renascimento com seus 30 palmos e aos diversos módulos joaninos, pombalinos e micaelenses de 20, 40 e 50 palmos.

De facto, a estabilização dos 40 palmos como módulo de parcelamento do solo suburbano é concebível no quadro de um processo de ordem emergente no qual agentes da construção especulativa descentralizada ocupam um espaço escassamente condicionado quer por normativas urbanas, quer por interesses especulativos de grande porte. A casa corrente de 40 palmos ocupa o nicho de uma arquitetura vernácula madura capaz de responder à acelerada expansão urbana do século XIX, mas antes de a prática construtiva descentralizada ter sido excluída dos principais processos de urbanização pelos grandes empreendimentos especulativos ou públicos.